2020-11-13 (IPMA)
Verão de S. Martinho: do mito à realidade e da Europa Continental aos Açores
“Verão de São Martinho” é uma expressão do saber popular que ilustra uma particularidade do clima de uma vasta região do sul da Europa - desde a Península Ibérica à Grécia – estendendo-se até aos Açores; este evento é típico do final de outubro e início de novembro, isto é, centrada na celebração cristã de Todos os Santos.
Nesta altura do ano e, naquela região continental, é frequente ocorrer um período estival que “interrompe as chuvas e o tempo variável” como é referido pelo Meteorologista e Manuel Costa Alves in «Mudam os ventos, mudam os tempos - O Adagiário Popular Meteorológico» publicado pela Gradiva.
E, se os dias são de sol, as noites são estreladas, calmas e frias levando à formação das primeiras geadas. É também altura das práticas (associadas a rituais ao ar livre) de “matar o porco” e de “lume, castanhas e vinho”, como é referido em diversos adágios.
S. Martinho terá nascido em Candes (sueste de França) no ano de 316 e morrido no início de novembro de 387. Foi oficial romano até aos 40 anos, altura em que ingressou na vida religiosa, ascendeu a bispo de Tours em 371. A sua biografia - imprecisa e pouco rigorosa (presume-se) - foi inspiradora de um mito criador de lendas capazes de atravessar o tempo.
No seu livro, Costa Alves diz-nos que uma das lendas a perdurar o mito se relaciona “…com o transporte do corpo de S. Martinho para o funeral, em Tours. Durante toda a viagem, que terá decorrido a 10 e 11 de novembro, «um sol radioso favoreceu os peregrinos, tão quente, que as rosas floriram». Entre 8 e 11 de novembro passaríamos a ter quatro dias abençoados pelas recordações dos feitos do principal responsável pela cristianização da Gália ocidental. Entre o maravilhoso do imaginário popular e o exercício da verificação observacional que nos vem do adagiário, a explicação sucinta do acontecimento…”.
Por outro lado, se o adagiário do sudoeste francês “…consagra a mesma atitude das populações a mesma interpretação e registo de rituais e de fenómenos atmosféricos…Igualmente anuncia as geadas que se formam nas madrugadas e amanheceres com céu limpo, ou a ocorrência de precipitações sob forma de neve, principalmente nas regiões mais a norte…”, já o adagiário espanhol “…desconhece o Verão de S. Martinho e os cerimoniais ao ar livre em torno da prova de vinho e da matança do porco...”.
Ora, este evento climático, tem uma explicação meteorológica. O período de transição entre o verão e o inverno traduz-se na união do anticiclone subtropical do Atlântico Norte (Anticiclone dos Açores) com o Anticiclone da Sibéria. Durante este processo, a variabilidade do estado do tempo é elevada, com sucessivas passagens da Frente Polar. Contudo, no período em torno da primeira década de novembro, ocorre em média um abrandamento e, até, uma inversão do fluxo zonal (de oeste) em altitude. Tal inversão, traduz num enfraquecimento ou mesmo bloqueio da Frente Polar sobre a Europa do Sul e, por vezes, verificando-se a predominância de dias com menos nebulosidade e menos precipitação, ou seja, uma relativa melhoria do estado do tempo.
Este efeito estende-se naquela faixa de latitudes até aos Açores, cujo arquipélago se situa perto da zona de transição onde o fluxo zonal se inverte (figura).
A edição do «Adagiário Popular Açoriano» de Armando Cortes-Rodrigues, contendo as notas e considerações essenciais de José Almeida Pavão, Francisco Carreiro da Costa e Natália Correia, publicado pela Antília, Secretaria Regional da Educação e Cultura – Angra do Heroísmo, em novembro de 1982, contém os adágios incluídos na publicação de 1947 na Açoriana «Adágios Meteorológicos do Adagiário Popular Açoriano».
Sobre este evento do clima, encontramos quatro adágios nos Açores: dois recolhidos nas Flores (“Inverno geral, um mês antes do Natal.” e “Se o inverno não erra o caminho, cá virá no S. Martinho.”), um recolhido na Terceira (Novembro pelos Santos, neve nos campos.”) e outro recolhido em S. Miguel (“Por Todos os Santos, neve nos campos.).
Na região dos Açores ocorre em média durante a segunda semana de novembro um processo inverso, ou seja, o fluxo de leste passa a oeste, promovendo a passagem da Frente Polar, com o regresso da nebulosidade e da precipitação de larga escala. Os adágios atrás referidos parecem ser consistentes com esta particularidade climatológica, sugerindo por um lado a ocorrência de geada, muito possivelmente nos locais mais elevados e mais abrigados das ilhas, em resultado do acentuado arrefecimento noturno até a primeira semana de novembro e, por outro lado, o início do tempo chuvoso de inverno depois do S. Martinho, isto é, a partir da segunda semana de novembro.
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